Heric Corrêa

PhD Candidate, Mathematics | IMPA.

A utilidade da matemática inútil


May 15, 2024

Uma simples discussão entre usuários no X, levou-me a revisitar um lugar profundo em que já estive mergulhado outras vezes: a utilidade da matemática inútil.  Daquela que é despretensiosa e, ao mesmo tempo, ambiciosa; que lida com a construção, formalização e verificação de afirmações. Aquela que é invisível aos olhos da maioria e, para alguns, invisível ao capital. Aquela que, (talvez) por acaso, é reconhecida como: matemática pura - livre das impurezas do pensamento utilitarista.

Quando essa discussão surge - e ela surge com frequência em mesas de bares - principalmente entre matemáticos e não-matemáticos, o argumento mais comum é o de mostrar, olhando para o passado, fatos e revoluções tecnológicas que só foram possíveis graças à ciência especulativa, sem preocupações com aplicações imediatas. E, de fato, é um argumento poderoso, principalmente quando se quer convencer alguém do seu mérito de estudar o que você estuda, ou quando o objetivo é esclarecer o papel da ciência de base para mentes contaminadas com o senso de capital acima do ser. 

Contudo, é uma visão deturbada e até perigosa considerar que a matemática pura existe com o propósito de algum dia se tornar impura. Mas, então, por que estudar essa matemática? Vejo muita semelhança dessa pergunta com a discutida por Italo Calvino em Por que ler os clássicos? Não por eu considerar a matemática (apenas) literatura ou (apenas) linguagem. Mas sim, por Italo sustentar a ideia de, mesmo que não tenha um porquê, ainda assim, é melhor ler do que não ler.

Nesta mesma direção, mas de forma mais ampla, incluindo todas as ciências especulativas,  Nuccio Ordine em seu brilhante manifesto: A utilidade do conhecimento inútil, sustenta que a valorização de conhecimentos como filosofia, história, arte e linguagens (entre outras), é necessária e primordial para tornar o mundo um lugar melhor para viver. 

Vou me ater a simplesmente recomendá-los a leitura deste manifesto e não explorar (por incapacidade minha) toda a profundidade do tema.  Até porque, não há forma simples de convencimento da importância da cultura e do culto à "beleza intelectual". 
“No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro: porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte.”  
                                                                                                      - Ordine
E para os matemáticos que chegaram até aqui e que relutam em acreditar que a matemática está no mesmo patamar que as ciências "inúteis", como arte, filosofia, história ou linguagens. Dê uma olhada no polêmico "A mathematician's apology" em que Hardy confessa: 
"Nunca fiz nada útil. Nenhuma descoberta minha fez, ou provavelmente fará, direto ou indiretamente, para o bem ou para o mal, a menor diferença para a comodidade do mundo... Julgado por todos os padrões práticos, o valor da minha vida profissional é nulo; e fora dela é trivial de qualquer maneira".
                                                                                    - Hardy
No entanto, é claro que é um reducionismo um tanto quanto ingênuo dizer que a matemática está na mesma prateleira que as ciências humanas (de fato, a segunda é mais importante). Sobretudo, a matemática também é uma ciência formal sendo desenvolvida, por alguns, com viés ferramental para as ciências naturais e até mesmo, desenvolvida como subproduto de outras ciências. Mas devemos aproveitar, e não ignorar, o fato da matemática pura ter o poder de flutuar entre os caminhos da natureza, da arte e da filosofia. 
 A matemática tem um tríplice objetivo. Deve fornecer um instrumento para o estudo da natureza. Mas não é só isso: tem um objetivo filosófico e, ouso dizer, um objetivo estético. Deve ajudar o filósofo a aprofundar noções de número, espaço e tempo. Seus adeptos, sobretudo, encontram nela fruições análogas às proporcionadas pela pintura e pela música.                             
                                                                                             - Poincaré


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